Arte a serviço da consciência ambiental, poder negro & união comunitária. Essa é a proposta do Cine Taquara, coletivo negro de Arte voltado ao cineclubismo e que destaca artistas independentes. O projeto ocorria na região do BRT Taquara até o agravamento da pandemia de covid-19. Na entrevista, modelo inédito no LACCOPS blog, Nelson Neto, poeta e Gleyser Ferreira, produtora cultural, ambos cineclubistas, idealizadores e organizadores do Cine Taquara falam sobre o coletivo de arte, as potências do audiovisual e das culturas afro-brasileiras.
LACCOPS blog: Falem um pouco sobre sua trajetória na arte
Cine Taquara:
Somos o coletivo Cine Taquara, cineclube preto de rua nascido em 2017 na Zona Oeste do Rio. Somos jovens negros moradores da região e sempre sofremos com a falta de acesso à Arte, Educação e aparelhos culturais públicos. Precisávamos nos deslocar para o centro e zona sul da cidade para termos mais acessibilidade à informação como um todo. Em outubro de 2017 decidimos fortalecer nossa comunidade ressignificando o único lugar que temos acesso: a rua. Através do protagonismo jovem, ocupamos um espaço ocioso do centro da Taquara, o final da passarela do BRT Taquara que, apesar da circulação de cerca de 50 mil pessoas por dia, era marginalizado por ser ponto de usuários de drogas e pelo preconceito da comunidade com pessoas em situação de rua. Resolvemos unir pessoas de todas as idades ali, exibindo filmes independentes com rodas de conversas, apresentações de poesia, música, doação de livros e promovendo feiras.
Nesses quase três anos exibimos mais de 100 filmes independentes, apresentamos mais de 100 artistas daqui e de outros lugares como Maranhão, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, França & de todos os cantos do Rio. De graça e na praça. Todo mês há 2 anos. Sempre com ajuda de moradores e movimentos da região que nos emprestavam equipamentos, ofereciam oficinas gratuitas e se apresentavam de forma voluntária. Construímos nosso Espaço de Leitura Carolina Maria de Jesus e nossa horta de ervas medicinais Tia Ciata na praça, o que impacta diretamente a vida dessas 50 mil pessoas que circulam todo dia na Taquara. Estudando e ouvindo as necessidade do nosso território, percebemos que a Zona Oeste acolhe mais de 40% da população carioca, é responsável por cerca de 70% do território da cidade é ainda assim, não recebe nem 10% dos centros culturais, apenas 4% das salas de cinema, e na Taquara, não temos nem 1% dos centros culturais e o único cinema é o nosso, na rua.
LB: Qual o público do Cine Taquara
CT: É um público bem diverso, muito por estarmos no meio da rua, e no meio do caminho, o cinema acontece em uma praça no fim de uma passarela do BRT e então acessamos os transeuntes. Desde crianças, idosos, pessoas em situação de rua, usuários do sistema de saúde mental.
LB: Alguma história que marcou o coletivo?
CT: Em algumas de nossas atividades no DEGASE - Departamento Geral de Ações Sócio Educativas; conversamos com os jovens sobre suas motivações, realidades, sonhos e expectativas. Reparamos como este sistema afeta desde as oportunidades sociais quanto restringe, através da opressão e violência extrajudicial; suas potências subjetivas.
Confluímos com nossos irmãos inseridos neste sistema carcerário sobre diversos aspectos da vida cotidiana como o genocídio da população negra, o machismo, o encarceramento em massa dos homens negros, o dia-a-dia nas periferias . Exibimos alguns filmes sobre figuras importantes da cultura hip-hop nacional, comentamos sobre a importância desta história para o desenvolvimento das comunidades negras nos Estados Unidos e como a Cultura hip-hop fortaleceu a união da juventude e o respeito entre as gangues do Brooklin nos anos 80 – que assim como as facções no Brasil hoje, vivem em guerra. Na semana seguinte, um dos jovens que escreve funk, nos apresentou um funk que ele havia escrito sobre a violência contra a mulher. Isto nos tocou profundamente pois evidencia como a conversa, a afetividade, o cinema e a música inspiram reflexões importantes para o desenvolvimento da nossa sociedade. Mesmo quando estamos expostos a diversos graus de violência e retirada de direitos fundamentais, como é o caso de muitos jovens que passam pelo cárcere. E como esta potência mantem viva nossas expressões culturais entre a juventude não apenas como expectadores, mas principalmente enquanto criadores que continuam e transformam legados.
LB: Como a arte pode criar espaços de resistência?
CT: Desde sempre resistimos, resistir e como respirar para o ser periférico, literalmente. Em meio a genocídios e epistemicídios para respirar e necessário resistir. Para a arte não ter necessidade de ser resistência e o encontro com o seu maior significado, suas experimentações, liberdades e descobertas plenas. Mas como absorver as benesses que a arte pode nos prover em meio ao caos que nos mata, são tantas preocupações que a arte fica em segundo plano para a maioria da população, isso é o que se imagina no tal senso comum. Mas esse mesmo senso comum é a própria resistência artística numa via de mão dupla onde se consome, produz e distribui a produção artística de um território. Acreditamos que resgatando nossa ancestralidade, nos integrando à natureza de forma coletiva e afetuosa, explorando a economia criativa e com livre acesso à arte, a autogestão comunitária é possível. E os espaços de resistência funcionam como um local de identidade, onde se vendo no outro se começa a produzir.
LB: De que forma o cinema pode atuar enquanto arte e resistência durante a pandemia?
CT: Neste momento de reclusão social, é de extrema importância mantermos nossa sanidade mental e consciência plena acerca das questões políticas e sociais que envolvem a humanidade, principalmente reflexões acerca do genocídio do povo preto ao redor do mundo. E o audiovisual – em especial o cinema preto independente – é esta linguagem potente e diversa que além da ficção, registra a história e pensamentos sobre a contemporaneidade que não deveriam ser ignorados.
Em nossa experiência durante a pandemia, exibimos em plataformas online, filmes que retratam a violência sofrida cotidianamente por mulheres pretas periféricas, um filme sobre a história dos Quilombos a partir dos estudos feitos pela intelectual preta Beatriz Nascimento, como também apresentamos filmes independentes que afloram a criatividade através da ficção. Todos os filmes que exibimos também foram dirigidos por pessoas pretas. Logo, recomendamos que nossa comunidade fique em casa – se assim for possível - trazemos meios de garantir a sanidade, informações pertinentes à história do povo preto para nossas comunidades e distribuímos os filmes produzidos por nossas irmãs e irmãos.
Sobre os autores:
Nelson Neto é poeta, contista, artista prático, oficineiro, cine-clubista, desprodutor contracultural e perambula pelo audiovisual. Integra a gang poética AMEOPOEMA desde 2010, produz nas ruas da cidade o sarau AMEOPOEMA. Participa, desde 2017, do coletivo Cine Taquara, que tem como proposta a ocupação do espaço público com exibições de filmes independentes e apresentações de artistas, promovendo arte e pensamento crítico na Zona Oeste da cidade. Desde 2005, produz e vende fanzines de poesia e artes visuais pelo Rio de Janeiro e outras cidades do Brasil. Participou da produção coletiva dos curtas Banheiro Químico (2012), Fanzine, Macacu Movie (2016) e Concha Vazia (2012) além de outras experimentações audiovisuais e cineclubista. Produz a Mostra Grampo - de fanzines e afins. Atuou como co-diretor do média-metragem documental Utopias Possíveis (2019).
Gleyser Ferreira
Produtora cultural independente, cineclubista, realizadora audiovisual, poeta & idealizadora do Cine Taquara - Cineclube Preto de Rua da Zona Oeste do Rio. Através das potências do audiovisual, das culturas afro-brasileiras & da arte-educação referenciadas em pensadorxs pretxs e periféricxs, Gleyser gera e nutre projetos que desenvolvem a auto-estima, sentimento de pertença e pensamento crítico na juventude da Zona Oeste carioca. Iniciou em 2016 sua graduação em Psicologia. Desde 2017, realiza a curadoria e produção do Cine Taquara, coletivo preto cineclubista que promove o acesso ao cinema independente, principalmente dirigido por cineastas pretas e já exibiu mais de 100 obras audiovisuais em mais de 50 sessões pelo Rio de Janeiro e San Martins na Bahia. Publicou suas poesias na Coletânea Poesia de Esquina em 2018, pela editora Independente cria da Cidade de Deus: Esquina Editorial. Atuou como diretora e roteirista do curta-metragem ficcional Encruza (2019) & atuou como diretora do média-metragem documental Utopias Possíveis (2019).
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