por Vivi Potiguara
poetisa, antropóloga, pesquisadora e fundadora do projeto Poesia de Esquina
"Ser poeta é gesto de luta."Vivi Potiguara
Ser poeta é gesto de luta. É ato político. Recordo minha amada avó me questionando sobre o que era o meu trabalho como se fosse ontem, “afinal de contas, você trabalha com o quê?”, quando eu vivia uma transição de produzir cultura de forma amadora para a experimentação em me tornar profissional com a firme, corajosa e insana decisão de viver de arte e produção cultural.
Nas periferias, tudo tem outro ritmo. No caso do campo da cultura, em qualquer das áreas e possibilidades artísticas, se tem sempre que se esforçar para mostrar o valor de suas realizações para então se atingir reconhecimento local ou externo, e por vezes, o primeiro que vem é de fora para dentro ou até internacional primeiro. Galo de casa não faz milagre, já dizia Exu. Temos um jeito esquisito de tratar poetas e artistas em geral. Quando era eu criança, a melhor expressão que achava que podia ter encontrado para entender o Brasil é que éramos uma República de bananas com complexo vira-latas. Mas hoje entendo que essa questão vem de dificuldade de admitir o país miscigenado que nos tornamos, baseado em estupro de mulheres pretas e indígenas. Nós sequer respeitamos nossos ancestrais da terra, que explora por recorte racial até os dias de hoje e que massacra mulheres do cotidiano de violências concretas ao sufocamento simbólico em movimentos sociais e políticos.
A poesia tem muita responsabilidade em nosso atual momento. Ao mesmo tempo que cria um (quase inimaginável) ambiente para a leveza dentro do caos. Invenções exclusivas da palavra falada aos ventos ou escrita em postes. Fazer luta real é cada vez mais necessário e a capacidade inventiva dos poetas, especialmente das periferias pode mover imenso diferencial do ponto de vista lúdico - política enquanto jogos, de ideias, de capacidade de pensamento e argumentação em defesa de pontos de vista do que se pensa para a esfera pública: agenciamento de revoluções internas e a gestação do estímulo a nos manifestarmos como artistas. Sem palanque ou exigências técnicas.
Creio que uma das principais contribuições à sociedade do movimento da Poesia de Esquina, surgido em 2011 na Cidade de Deus, seja os efeitos da sua proposta de microfone aberto com o objetivo de democratizar o poder da palavra, para que escancaradamente qualquer pessoa presente participasse. Vimos diante de nossos olhos, estudantes e trabalhadores começando a ler mais, fazer escrita criativa e experimentar a poesia falada partilhada com todos. Quando alguém na periferia passa a se encantar com literatura e poesia, o ganho é da vizinhança infinita e rede de interação social. Ficamos mais interessantes, quanto mais lemos. Nos ajuda até a namorar mais. Para mim já se tornou critério inconsciente de escolha de parceiros afetivos.
A escuta, por outro lado, é um dos motivos de se gerar e manter energia para a produção de saraus poéticos na Cidade de Deus com regularidade mensal, durante tantos anos, a imensa necessidade de escutar vozes amigas em partilha de seus repertórios e jeitos com nosso orixá poesia.
Em 2019, lançamos a coletânea da Poesia de Esquina, com 38 poetas frequentadores dos saraus do movimento. A maior aventura vivida por nós, quase uma ida à lua de tanta expectativa, investimento, sonho e trabalho. Centenas de livros vendidos pelo selo Esquina e edição esgotada.
Nestes tempos de pandemia temos feito corridas internas no quintal, escrito poesia com tinta de saudade e meditado sobre caminhos para lidar com a tecnologia sem nos aborrecer com as falhas de rede, sinal de internet e problemas de áudio. Experimentamos uma edição da Poesia de Esquina em maio e talvez venha outra por aí, em agosto. Nesse meio tempo de tudo, surgiu uma aglomeração irmã gêmea com brilho nos olhos e sorriso no rosto quase igualzinho: o Sarau da Flecha, que possui como DNA a valorização da cultura preta e indígena e a compreensão da espiritualidade como forma de fazer existir amizade, poesia e vida na Nova Era em que já estamos.
Nota da equipe LACCOPS: A próxima edição do Sarau da Flecha ocorre em 26/07.Mais informações; @vivi.potiguara
Figura 1: Poesia de Esquina
Fonte: Divulgação
Segunda edição Sarau da Flecha, de junho de 2020:
Poesia de Esquina (Tom Brito)
A poesia está nas ruas
Está nas praças e nas vielas
Nas comunidades
Na nossa favela
Está no valão correndo a céu aberto
Está no lixão de cores irrecicláveis
Está no menino que sofre sem pai
Mas empina esperança em dias de sol
A poesia está no craque
Que bate bola lá no campinho
Está no aviãozinho de papel e na pipa feita à mão
Está mais perto do que se imagina
Está entre os meus e os teus
A poesia vive
Na Cidade de Deus
A poesia não é ilusão
E vem mostrar a realidade
Dar voz ao pobre de toda a cidade
Dar novas cores pro mundo sorrir
Sem esquecer das dores
E do preto que morre injustiçado
A poesia está do seu lado
Está nas bocas
De nossas crianças
Está onde resiste a lembrança
Das injustiças contra ancestrais
Está nas escolas
Está nas esquinas
Sobre a autora: Viviane Potiguara é Antropóloga, Pesquisadora e Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio
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