por Letícia Sabbatini
A pandemia do novo coronavírus agravou as características de outra pandemia que há tempos está em curso: a violência contra a mulher. No Brasil, em um recente esforço de pesquisa, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública comparou os índices de violência entre os primeiros semestres de 2019 e 2020. O resultado reflete a fala da antropóloga Débora Diniz em entrevista à Folha de São Paulo: “a pandemia tem gênero”. Isso porque, além das mulheres ocuparem majoritariamente as linhas de frente no combate ao vírus atuando nas esferas do cuidado, os índices de feminicídio aumentaram no país, conforme mostra o levantamento. Por outro lado, o número de denúncias de ameaça, estupro, lesão corporal e outras formas de violência contra a mulher registrou uma queda, quando comparado ao primeiro semestre de 2019.
Essa queda, vale dizer, está longe de significar uma conquista efetiva na luta por direitos femininos, apontando, na realidade, para a subnotificação dos casos ao invés de uma diminuição destes. Considerando que os episódios de violência contra a mulher, no Brasil, são majoritariamente perpetrados por parceiros ou ex-parceiros íntimos no espaço domiciliar, as medidas de segurança para o controle do vírus – tais como a adoção do trabalho remoto e o isolamento social sugerido pelas autoridades, por exemplo – impactam diretamente nessa realidade violenta. Assim, tais mulheres passam a ter na presença constante de seus agressores uma espécie de sombra vigilante.
Se antes uma mulher em situação de violência aguardava a saída do agressor para pedir
ajuda, denunciar ou resistir de qualquer outra forma, agora encontra menos oportunidades de se fazer ouvir diante da cortina da privacidade que torna o lar um ambiente de reprodução de violências e desigualdades. Nessa conjuntura, ainda que algumas vertentes do feminismo valorizem a autonomia feminina resguardada pelo espaço domiciliar, teóricas apontam que, em um contexto de hierarquias e estruturas desiguais e opressoras, a privacidade do lar pode atuar no sentido de promover a manutenção da dominação masculina (Pateman, 1989; Biroli, 2014). O chamado mundo dos afetos, ou seja, o lar, aponta Biroli (2014), “é também aquele em que muitos abusos puderam ser perpetuados em nome da privacidade e da autonomia da entidade familiar em relação às normas aplicáveis ao espaço público” (p.34).
Assim, há uma certa dificuldade por parte do governo em atuar nessa esfera ainda entendida como privada, implicando barreiras à efetiva aplicação das leis de combate a violência contra a mulher já existentes. Essa lacuna entre poder público e mulher em situação de violência pode ainda agravar a chamada Rota Crítica, entendida por Sagot (2000) como o difícil e turbulento caminho a ser percorrido até a superação e a saída da violência.
Tal conjuntura, que embora anterior à pandemia de covid-19, foi por ela agravada, serve de refletor para a fragilidade das políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil. Dessa forma, ainda que legislações e medidas tenham, ao longo dos últimos anos, ascendido no cenário nacional, parecem atuar mais no sentido protetivo do que preventivo, o que, no contexto atual, nos deixa ainda mais distantes de uma resolução que carrega traços de utopia. Levando isto em consideração, vale o questionamento: será que estamos todos no mesmo barco, como o jornalismo hegemônico tanto ressaltou nos últimos meses?
Parece-nos, por outro lado, que as mulheres em situação de violência – assim como outros grupos constantemente invisibilizados – foram relegadas a um caráter não emergencial e que, portanto, não necessitam de embarcações e estruturas estrategicamente planejadas para superarem essa tempestade. Ainda que iniciativas
isoladas despontem em estados e municípios brasileiros, faltam, para além de um olhar
atento e de uma mudança pensada a partir de um caráter estrutural e cultural, políticas
públicas. Como o estímulo a atividades essenciais de acolhimento, o reforço de serviços
institucionais de apoio ou ainda a distribuição de uma renda mínima para essas mulheres. Se a pandemia de covid-19 possui um horizonte otimista a partir do desenvolvimento de vacinas e tratamentos, a violência contra a mulher segue uma constante que, ainda sem resolução em vista, deixa marcas e vítimas todos os dias.
Sobre a autora:
Letícia Sabbatini é mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação, da Universidade Federal Fluminense e jornalista pela UFRRJ. Associada ao Laboratório de Comunicação, Culturas Políticas e Economia da Colaboração (coLAB/UFF), se interessa pela interseção entre tecnologias digitais e estudos de gênero.
Referências:
Biroli, F. (2014). O público e o privado. MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia.
Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 31-46.
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