Cinema e Política em tempos de pandemia
- Equipe Laccops
- 21 de abr. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 28 de abr. de 2020
Tatiane Mendes
Vem da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, a ideia de garantias fundamentais à vida humana, independente de gênero, classe, condição política ou econômica, documento que inspirou legislações mundo afora e alcançou o território brasileiro como base para a Constituição Federal Brasileira de 1988, denominada “constituição cidadã”. Através dos direitos sociais, o objetivo era garantir a igualdade, a dignidade e a liberdade dos sujeitos inseridos em uma coletividade, bem como o acesso a todos os elementos que consolidam a cidadania como dimensão múltipla da existência, sendo a um só tempo política, econômica e cultural. Logo, compete ao Estado brasileiro, pelo exercício da lei sobre a qual se firma a república federativa do país, garantir o acesso ao cidadão aos mecanismos que promovem a fruição, produção e distribuição de bens culturais, sejam eles materiais e imateriais. A importância do Direito à Cultura caminha em direção diametralmente oposta ao cenário cultural brasileiro atual, que começa na diminuição gradativa dos incentivos a programas de fomento às artes, os cortes de verbas estaduais e municipais, bem como o estrangulamento de orçamentos de espaços culturais.
Da mesma forma, o término de programas culturais em espaços públicos de sociabilidade, caso de escolas públicas, é um sintoma da estratégia neoliberal de sufocamento dos mecanismos de consolidação de cidadania, encontro e reflexão sobre a realidade, ações que culminaram com a extinção do Ministério da Cultura em um país em que o acesso às artes ainda é privilégio de poucos. Com os cineclubes não foi diferente. Linha de frente de uma série de projetos de Educação e Cultura entre os anos 2000 e 2016, os espaços de cinema em escolas públicas atuam como instâncias de comunicação comunitária, reunindo a fruição estética de filmes, reflexão e produção de narrativas. Mais do que isso: são, em muitas cidades brasileiras a única sala de exibição de filmes em um cenário onde, segundo o mapeamento do extinto Ministério da Cultura (CULTURA, 2009), ainda hoje a grande maioria dos municípios não têm cinemas, teatros ou centros culturais. Em tal medida que, uma vez que os cineclubes são criados, agregam-se às cidades como espaços de encontro e reflexão (MENDES, 2015) gerando ações artísticas e políticas onde os participantes podem lançar olhares para a cidade, pensar o mundo e gerar ações de transformação social e cidadania. Mas então, se os cineclubes se constituem como salas físicas em espaços coletivos, o que resta da potência destes em tempos de pandemia?
A potência dos cineclubes reside para além da materialidade das salas de projeção, mas enquanto ação de reunir pessoas. Será justamente enquanto atravessamento da cidade e do cotidiano que a importância do cinema se faz, experiência que se dá por vezes na medida do inesperado, de alcançar pessoas que estariam distraídas, imersas em seus afazeres, quando são surpreendidas pelo cinema enquanto manifestação cultural efêmera, mas não menos potente.
A grande força do cinema em tempos atuais, de confinamento, insegurança e crise humanitária estará no caráter inesperado da ação, na mobilidade com que tal experiência se dá e principalmente quando cria um espaço político na cidade à revelia do Estado, mas pautado em redes de solidariedade e, principalmente, cidadania. Pensar na forma como o cinema ainda se constitui na sociedade, mesmo em tempos de confinamento é compreender que a importância da democratização do acesso a mecanismos de produção, fruição, letramento audiovisual e distribuição.
Torna-se fundamental localizar o cinema como um espaço político de enfrentamento às estratégias de precarização sistemática de manifestações culturais, pelo fato de que a potência do cinema está na gratuidade e na democratização do acesso, bem como na garantia da ocupação do espaço para gerar reflexões em relação à cidade. Logo, o cinema se torna atualmente uns lócus de consolidação da cidadania. Cidadania que se dá quando se constrói o bem comum não no asfalto e concreto das construções, ou em grandes aglomerações, mas na intensidade dos afetos dos sujeitos, reunidos em aliança sob a luz do cinema, do alto de suas varandas e janelas, ainda que seus corpos não estejam próximos, dado o contexto pandêmico atual. Em tempos de COVID-19 a proposta do LACCOPS caminha no sentido de pensar o cineclube como potência transformadora, norteado pelos pressupostos de ser comunicação e, portanto, comunitário por excelência. Na instância de afeto, o fortalecimento de laços gera esperança, em dimensões igualmente sensíveis e políticas. Este e o caso de ações como o #cinemanajanela, da Prefeitura do Rio ou o belo Cine.Janela, da Bahia, inspirada no #cinemadecasa[1], ações de projetar filmes em fachadas de cidades italianas. O primeiro é uma capital italiana, Roma, imaginada pelo festival internacional Alice nella città.As sessões nascem da idéia de projetar as imagens dos filmes em paredes das casas italianas. Os filmes são exibidos todas as noites e muitas cidades já aderiram ao projeto ,convidando os italianos, castigados pelo COVID-19, a abrirem as janelas e o coração. Já no Brasil, iniciativas começam a surgir, como no caso da prefeitura do Rio de JaneiroE. Em Salvador ação Cine.Janela convida os moradores em isolamento a assistirem, de duas janelas, filmes de Charles Chaplin[3]. Todas as iniciativas, ao expandirem e reinventarem o cinema para além do espaço físico e do encontro de corpos, fazem compreender que o cineclube está para além do material, mas na relação entre as pessoas e na vinculação social, que pensamos com Muniz Sodré (2010) como o ato de criar conexões, nexos entre o eu e outro, entre a cidade e as pessoas, conceito que baseia os pressupostos teórico-metodológícos do LACCOPS. Apesar da grave pandemia que nos atinge e das circunstâncias da emergência humanitária que expõem e agravam desigualdades sociais e posicionamentos de Estados de caráter genocida ao abandonar a população vulnerável sem recursos para enfrentar o vírus Covid-19, é urgente pensar em saídas afetivas e, portanto, políticas, para garantir que os direitos fundamentais dos cidadãos sejam garantidos, a cultura e a cidadania entre eles. Ainda em Sodré apontamos que o cinema, seja na rua, na praça, nas escolas ou mais recentemente, na janela, ainda reserva sua potência transformadora.
Arriscamos dizer que a única dimensão do cinema que jamais poderá ser substituída é a dimensão afetiva, que envolve os sujeitos em uma experiência que é igualmente coletiva e individual. Coletiva, posto que se dá em meio ao espaço de encontro que o cinema proporciona, auxiliando a consolidar laços que a pandemia atual esgarça e por vezes rompe. Além disso, o cinema, porque acessa emoções, memórias e sentidos dos corpos envolvidos na prática, aproxima igualmente sujeito, cinema e cidade em uma mesma experiência humana. Na potência de estar juntos, o cinema na rua, na janela, projetado nos muros e prédios se faz lócus do encontro com a dimensão poética e sagrada da vida, alma coletiva que reforça o que há de humano e, portanto, uma possibilidade de ser libertária e comunicacional na existência social, instancia que se faz urgente no cenário atual. Magia por excelência, posto que constituído nas dimensões modernas do insólito e do maravilhoso, o cinema não é a linguagem prioritária ou unicamente transformadora da vida através da técnica ou discurso, mas, prioritariamente – e daí sua importância –, janela que abre para a alma humana, através da tela e fora dela.

Referências:
CULTURA em números: anuário de estatísticas culturais 2009. – Brasília: Minc, 2009.
MENDES, T. Cinema e educação: entre o eu estético e o nós político. Uma análise de experiências sensíveis a partir do projeto Cinema para todos / Tatiane Mendes Pinto. – Dissertação. (Mestrado em Mídia e Cotidiano) – Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano, Universidade Federal Fluminense. Niterói, Rio de Janeiro. 2015. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/3868/1/DISSERTACAO_TATIANE0911.pdf. Acesso em 14 jan. 2020.
SODRÉ, M. . Antropológica do espelho: Uma teoria da comunicação linear e em Rede. Petrópolis: Vozes, 2010.
____. A ciência do comum: Notas para o método comunicacional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. 323pp.
[1] https://www.facebook.com/alicenellacittafestival/. Acesso em 15/4/2020 [2] https://www.istoedinheiro.com.br/prefeitura-leva-cinema-para-morador-da-zona-norte-do-rio-em-isolamento/. Acesso em 16/04/2020 [3] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/04/projecao-de-filmes-mudos-em-predio-viram-atracao-em-salvador-sob-pandemia.shtml.Acesso em 18/04/2020
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