Por Rodolfo Viana, fotógrafo e doutorando em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense
Pedra. Linha. Agulha. Lã. Varetas. Cola. Pipa. Plástico. Pentes. Objetos pessoais diversos. Fotografias impressas, tanto autorais, quanto de álbuns de família, e, claro: nossos corpos. Matérias e materiais fundamentais ao nosso processo de criação coletiva, onde os sintomas históricos de subalternização do negro são sentidos nas formas e nas funções artísticas.
Tão somente seria repetitivo se insistíssemos em enfatizar que o campo da cultura lida com o precário – até aqui – não diríamos novidades. Quando falamos em pessoas negras no campo da arte, há outra ênfase, o desajuste: temos que fazer o dobro para ter metades. Discurso que nos esforçamos para fazer ecoar.
Não por acaso, escolhemos engajar a arte ao mês da Consciência Negra, em novembro de 2019. Atendemos ao convite do Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica (Agaó), sendo nós, um grupo de sete artistas negros, integrantes do coletivo Negres Fotógrafes responsáveis pela concepção, gestão e produção da exposição Imaginária Corporeidades Negras. .
Imagens 1 e 2 :Exposição Imaginária
Por opção, por criação de redes próprias, nos colocamos em posição de trabalho em favor da cultura. Não como coadjuvantes, mas acreditando na importância dos protagonismos, na ocupação política dos espaços institucionais, na circulação de nossas obras, no arejamento que visa desarticular as lógicas da “branquidade” que se pretendem invisíveis. “Branquidade” esta que pouco se vê como sectária nos afamados ciclos de “homens cordiais” cariocas, que atendem pelo estrangeirismo – network –, e não, rede, ou como preferimos: encruzilhadas. Sentido mítico e epistemológico já presentes no modo de conceber um pensar pós-colonial.
Com isto, mais uma vez, nos restam dois elementos históricos fundamentais: o corpo e a força de trabalho. Partimos da crença que seria daí que nasceria a nossa arte, desses dois elementos – corpo e trabalho –, vitais a nossa existência.
Quanto ao trabalho, palavra de sentido semântico amplo na história negra, sendo tanto um termo que se relaciona ao culto dos ancestres afro brasileiros, quanto algo que é indissociável ao cotidiano de uma pessoa preta, ambos os sentidos tornam-se componentes que se acoplam ao nosso corpo. O que significa dizer que trabalhamos em dobro, nos espremendo entre a cultura do trabalho ordinário e o extraordinário trabalho da cultura sem ganhos financeiros.
Um dobro que se verte em metades, que não nos é suficiente, que nos sufoca, que não nos apresenta, que nos acua. Igualmente, nos faz potentes, criativos, insistentes, nos coloca em diálogo ante a encruzilhada entre a arte preta e os meandros dos espaços institucionais.
Foi decidido por nós, sete artistas negros, por sinal, número exusiáco1 , fazer encontros na forma de laboratórios de criação coletiva. Fomos acolhidos pelo Centro Cultural Pequena África (CCPA), no Santo Cristo (Centro do Rio) e, fizemos de lá, nossa encruzilhada de criação. Trajetórias, motivações, interesses e trabalhos distintos necessitavam encontrar um ponto em comum em nossas concepções de negritudes, fotografias e artes.
Cabe aqui um parêntese sobre o espaço histórico que nos acolheu. O CCPA fica atualmente na Rua Camerino, antiga Rua Valongo e constitui um dos espaços históricos da região conhecida como Pequena África. O casarão fora uma Casa de Engorda, onde os escravos recém chegados recebiam cuidados para serem revendidos. Atualmente, segundo consta no site da RioTur, o centro visa “resgatar e preservar os valores culturais da antiga Pequena África”. No entanto, o espaço se mantém de pé pela força de trabalho de voluntários. Não há iluminação pública, segurança, a água encanada, na ocasião, estava cortada e sem previsão de reestabelecimento, o que torna as atividades no local cada vez mais escassas. Faço o parênteses para abrir a caixa-preta da estado dos aparelhos culturais negros e sublinhar a degradação em que muitos se encontram, tal o caso do CCPA. Portanto, muito além do precário que o campo da cultura, corriqueiramente, se queixa.
Imagens 3 e 4:Laboratórios de Criação Coletiva
Dito isto, nossa arte está atravessada pelo precário, não por escolha, mas por encurralamento, dada a implosão que a cultura negra está sujeita no país. Implosão que buscamos nos escombros não somente a defesa do que sobrou, mas a potência estética das resistências que se deseja fazer ver e ouvir.
A resultante desse processo não se descola desses escombros, inclusive no que se refere ao nosso artifício de criação possível. Sem esquecer de Vilem Flusser, a superfície das imagens técnicas que nossa fotografia pode aderir, dadas as condições, não poderiam ser com sais de prata, com impressões em fine art, mas superfícies de artifícios fotográficos.
Imagens 5 e 6 :Laboratórios de Criação Coletiva
Explodir os suportes, romper o quadro fotográfico, dialogar com a pós-fotografia, a cena expandida, não se trata apenas de uma aproximação com a arte contemporânea, mas com o possível único, e talvez, o necessário, para que estas subjetividades negras se façam ver.
Imagens 7, 8 e 9:instalação Menino do Rio, 2019
Para se pensar uma fotografia preta – e de preto –, é preciso revisitar e ressituar os debates sobre imagem e política na chave racial. Ou, como lembram e insistem diversos autores, e que vibram nos ativismos: nada sobre nós, sem nós!
Imagens 10,11,12 e 13:Instalação Paisagem, 2019
A exposição foi divida em três pequenas partes. A primeira delas, planejada por nós, dedicou-se à pensadora Azóilda Trindade, onde buscamos imagens de acervo e arquivos pessoais, tornando visível a crença da autora sobre a cultura e a educação pública abarcando a temática central. A segunda, criada de forma inesperada, dedicou-se a homenagear a integrante do grupo Valda Nogueira, jovem fotógrafa de 34 anos que teve a vida tomada de forma criminosa, dias antes da abertura da exposição, por um atropelamento que não lhe prestou socorro. Valda também integrava o coletivo Farpa e plataformas de mulheres fotojornalistas como Women Photograph, Diversify.Photo e MFON Women.
A outra parte dedicou-se à exposição das obras coletivas e nossas obras individuais – onde o reflexo da precariedade mais nos atingiu, em especial, durante a montagem. Novamente, devo relembrar que o trabalho que nos propomos, era duplo, e não estava desassociado de nossos “dias de preto”.
Imagens 14, 15, 16 e 17: obras individuais
O trabalho realizado nesta encruzilhada nos levou à parceiros, ajudas, laços e colaborações diversas. Nos escombros onde se encontram linha, papel, pedra e outros tantos materiais, existem muitas caixas-pretas ainda por serem abertas, com sistemas de registro de trabalho que fazem ver corpos, mas que pouco são vistos.
Imagens 18, 19, 20 e 21: Criação coletiva
Imagem 22: rodas de conversa no Agaó
Vídeo Manifesto
Sobre o autor:
É fotógrafo (retratista) e desenvolve trabalhos autorais no campo das artes visuais. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM/UFF). Mestre pela UFRJ, no Programa Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC/ECO
Referências Imagens:
Imagens 1 e 2:
Corporeidades Negras. Artistas-Produtores: Fernanda Dias (@fotofernandadias); Hiago de Farias (@hiagodefarias); Marina S. Alves (@marina.foto.grafas); Paula Miranda (@pcdemiranda); Rodolfo Viana (@rodolfovianaclicks); Thais Ayomide (@thais_ayomide); e de forma póstuma, Valda Nogueira (@valdanogueira); Curadoria: Adriana Medeiros e Januário Gárcia; Outras obras e trabalhos podem ser encontradas no perfil @fotografxsnegrxs
Imagens 3 e 4:
Laboratórios de Criação Coletiva com os artistas visuais: Rodolfo Viana, Valda Nogueira e Marina Alves
Imagens 5 e 6:
Laboratórios de Criação Coletiva com os artistas visuais:Thais Ayomide e Hiago Farias.
Imagens 7, 8 e 9:instalação Menino do Rio, 2019
Criação Coletiva: Rodolfo Viana, Paula Miranda, Thais Ayomide, Valda Nogueira, Hiago Farias, Marina.S.Alves. Instalação: As paisagens do Menino do Rio, 2019. Pipas, linhas e rabiolas e nossas paisagens.
Imagens 10,11,12 e 13:Instalação Paisagem, 2019
Criação Coletiva: Rodolfo Viana, Paula Miranda, Thais Ayomide, Valda Nogueira, Hiago Farias, Marina.S.Alves. Instalação: Paisagem, 2019
Pentes, linhas de pipa, cadeira, fotografias do processo de criação coletiva em 3x4 e 4x7.
Imagens, 14, 15,16 e 17 ( Da esquerda para a direita, primeira linha:imagens 14 e 15. Segunda linha: 16 e 17).
Imagem 14: formação militante. Acervo pessoal Janete Ribeiro.
Imagem 15: Imagens dos anos 80.Paula Miranda. Encontrei pra você, 2019
Fotografias 20X25 Paula Miranda, Fotografia 25x38 de Valda Nogueira, linha de bordado, linha de pipa e trecho extraído de “Valores Civilizatórios afro-brasileiros na educação infantil” de Azoilda Loretto da Trindade.
Imagem 16 : Thais Ayomide. Café Preta, 2019. Colagem. 30x45cm
Imagem 17:Obras Individuais
Imagem 18: Criação Coletiva: Rodolfo Viana, Paula Miranda, Thais Ayomide, Valda Nogueira, Marina.S.Alves, Fernanda Dias, Hiago Farias; Partilha, 2019. Fotografias, mandala, búzios, esteira;
Imagem 19: Criação Coletiva: Rodolfo Viana, Paula Miranda, Thais Ayomide, Valda Nogueira, Hiago Farias, Marina.S.Alves Instalação: A rua é nós, 2019. “Lambe” na madeira, varetas de bambu. e linhas de pipa.
Imagem 20: Criação Coletiva: Rodolfo Viana, Paula Miranda, Thais Ayomide, Valda Nogueira, Hiago Farias, Marina.S.Alves. Instalação: Êre, 2019.Pipa, colagem, giz de cera
Imagem 21: Hiago Farias. Pixaim, 2019. MDF, palha de aço, linha de costura, fotografia.
Imagem 22: Durante o mês de novembro de 2019, foram realizadas diversas rodas de conversa no Agaó paralelas a exposição, envolvendo as temáticas: Mulher Negra e Fotografia; Fotografia e Território; Corpos Negros e a Encruzilhada; Fotografia e Afrofuturismo; Fotografia, ancestralidade e memória; Fotografia e Educação
Notas:
1:Relativo a Exu, orixá de religiões de matriz afro.
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