top of page
Foto do escritorEquipe Laccops

Representação e representatividade da negritude na mídia

por Diego Cotta, jornalista, doutorando e Mestre em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense - UFF


Em abril de 2020, o governo federal difundiu um novo programa de “recuperação e retomada do crescimento econômico”, intitulado de Pró-Brasil . A campanha publicitária do recente pacote de medidas em resposta aos impactos relacionados ao coronavírus utilizou apenas imagens de crianças brancas, oriundas de um banco de imagens internacional. A nítida indiferença e aparente despreocupação com a representatividade do povo brasileiro em peças de publicidade governamental desta magnitude não pode mais ser encarada como descuido do fazer publicitário de órgãõs da Presidência da República, especialmente da Secretaria Especial de Comunicação Social.

É importante frisar que a dominação de grupos por outros se dá de diversas maneiras e se vale de inúmeros estratagemas, sem que esqueçamos os conflitos e as negociações inerentes às relações. Na sociedade contemporânea, a conquista do discurso hegemônico que vai respaldar o estado de dominação e atravessar as relações de poder, terá na mídia o ambiente profícuo para seus intentos. Um forte aparato midiático capaz de difundir os discursos de dominação é investido por grupos, classes, indivíduos, governos, organizações, enfim, de modo que a vida, a cultura, os códigos sociais, as existências e vivências sejam codificadas, padronizadas e normatizadas, para não dizer silenciadas, aniquiladas e violentadas.A hegemonia se dá não apenas pela força física, material ou coerção, com o militarismo ou a economia, mas também pela difusão de ideias, imagens e discursos, a partir de estratégias de argumentação e persuasão no cotidiano. Mecanismos de controle ideológico são postos em funcionamento, visando à conquista do consentimento da opinião pública e da manipulação do imaginário social, fazendo com que tudo pareça natural e irreversível.

O uso massivo de textos e discursos que valorizam a branquidade em detrimento da população negra nada mais é do que a aplicabilidade simbólica e estruturalizante de um “pacto narcísico da branquitude”, como nos ensina Cida Bento (2002). Tais práticas estão muito longe de serem “desatenções” e incorporam uma reiterada autopreservação da supremacia branca de verem seu grupo e seus interesses como referências das condições humanas. São táticas e estratégias discursivas de manutenção de privilégios seculares.

A pesquisa “Diversidade racial e de gênero na publicidade brasileira nas últimas três décadas (1987/2017)” , do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa/UERJ), revela que cerca de 80% das figuras humanas que estampam publicidades são de pessoas brancas. E vai além: 46% das aparições eram de homens brancos; 37% mulheres brancas; 8% homens pretos ou pardos; e 4% mulheres pretas ou pardas. Os pesquisadores se debruçaram sobre 370 edições da revista Veja, computando mais de 13 mil figuras humanas analisadas.

Um outro fator interessante desta pesquisa é sua proximidade com as intersecções do racismo. Sabemos que a população retinta já é por demais marginalizada e que esta deflagração serve a um projeto histórico de manutenção de privilégios da branquitude; entretanto, não podemos deixar de registrar que esta situação pode recrusceder se a analisarmos sob a perspectiva da interseccionalidade (CRENSHAW, 2002). Trazer para o debate a sobreposição de discriminações nos auxilia a compreender melhor as dinâmicas das sociabilidades dos sujeitos envolvidos e a enxergar a importância dos marcadores sociais da diferença na construção do ódio à alteridade.

Tomemos como exemplo o aniquilamento das subjetividades de bichas pretas. Podemos aferir que a homofobia atrelada ao racismo, com doses de misoginia e machismo, asfixia vivências que se distanciam da masculinidade hegemônica, aquela permeada pelo patriarcalismo tóxico e estruturante da sociedade e das relações interpessoais. E, sem dúvida alguma, os discursos midiáticos serão meios potentes de veiculação do ódio àqueles que diferem da norma.

O humor hostil, por exemplo, é uma estratégia cotidiana que parte da população brasileira utiliza para expressar seu ódio e desprezo por gays negros. Ele deve ser encarado como uma mensagem cultural que opera a partir de estereótipos; e só faz sentido dentro de um contexto específico, no caso, a homofobia e racismo que estruturam as práticas sociais historicamente. O racismo recreativo (MOREIRA, 2019) é um sistema de dominação social que reproduz privilégios e sedimenta a respeitabilidade exclusiva de pessoas brancas.

A caricatura e o uso da hilaridade são estratégias da supremacia branca de fixar um lugar subalterno para bichas pretas. Jorge Luiz Souza Lima, por exemplo, conhecido pelo seu nome artístico Jorge Lafond, foi um ator, comediante, dançarino e drag queen brasileiro. Seu principal personagem foi “Vera Verão”, veiculado pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) de 1992 a 2002. “A Praça é Nossa”, programa humorístico onde “Vera Verão” ganhava vida, durante anos a fio, reproduziu estereótipos das bichas pretas, reduzindo a complexidade de suas identidades ao escárnio e à zombaria para ganho de audiência.

Mais um exemplo de como a mídia, neste caso a TV brasileira, constrói imaginários homofóbicos e racistas que formam e moldam o entendimento nacional sobre determinados sujeitos e, por conseguinte, justificam e naturalizam práticas de violência. Os professores Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002) escreveram sobre o uso da hilaridade na televisão, vejam:


essa ideia, na tevê aberta, privilegia fortemente a ótica do grotesco. Primeiro porque suscita o riso cruel, que parece assumir contemporaneamente foros de liberdade de pensamento. A hilaridade sempre foi um vitorioso recurso universal na mídia, mas agora se impõe com um novo estilo, em que a crueldade – entendida ora como gozo do sofrimento do outro, ora como nenhuma contemplação ética para com o tema em pauta – é o traço principal (SODRÉ; PAIVA, 2002, p. 132).


Em suma, mesmo com estudos sobre a perpetuação do racismo estrutural na sociedade brasileira e apontamentos para uma possível mitigação deste câncer, que assola este país que teima em reproduzir um mindset escravocrata em suas práticas sociais, o silenciamento praticado por muitos parece engrossar o caldo da conformidade e da sujeição. É preciso, como bem nos ensina Djamila Ribeiro (2019), termos práticas antirracistas. Tensionar o status quo e radicalizar com a representatividade para “inglês ver”.

Se a maioria da população brasileira é preta ou parda, não faz sentido algum propagandas continuarem a veicular peças publicitárias com um/a negro/a para cumprir cota e contemplar o “politicamente correto”. O debate precisa ir além da representatividade singular e contemplar reivindicações de proporcionalidade nos meios de comunicação, onde a disputa pelos imaginários e narrativas se dá. Pois, se as relações de poder estão em frequente disputa, será a cultura midiatizada de nosso tempo o lugar por excelência do confronto, uma vez que é nela onde há compartilhamento de sentidos.

Como a linguagem produz e fixa sentidos, seus usos e aplicabilidades também serão reinventados por outros sujeitos do discurso, cuja meta deve ser criar brechas capazes de comportar novas representações e lugares de enunciação. Já há exemplos na contemporaneidade de contradiscursos potentes e disruptivos, mas isso já é outro artigo.



sobre o autor:


Diego Cotta é doutorando e mestre em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Graduado em Comunicação Social - Habilitação Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Participa do grupo de pesquisa MULTIS - Núcleo de Estudos e Experimentações do Audiovisual e Multimídia do PPGMC-UFF.

Referências Bibliográficas


BENTO, Maria Aparecida. BRANQUEAMENTO E BRANQUITUDE NO BRASIL In: Psicologia social do racismo – estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil / Iray Carone, Maria Aparecida Silva Bento (Organizadoras) Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. (25-58).


CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos aos gêneros. Estudos Feministas, ano 10, 1º semestre, p. 171-188, 2002.


RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Pólen Livros, 2019.


SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.


127 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page