Pós-fotografia e Memória
- Equipe Laccops
- 21 de abr. de 2020
- 6 min de leitura
Rômulo Normand Corrêa[1]
Desde os primórdios da história da fotografia, foi estabelecida uma relação entre fotografia e memória. Em 19 de agosto de 1839, o cientista e político francês François Arago apresentava o processo fotográfico inventado no mesmo ano por Louis Jacques Mandé Daguerre, chamado de daguerreótipo, aos membros da Academia de Ciências e da Academia de Belas Artes de Paris. Em seu discurso, Arago convenceu os seus pares da genialidade da invenção e destacou a grande contribuição que traria para a percepção e para a memória, pois “[...] permitiria preservar aquilo que escapa à memória, ao reter a informação visual que mereceria ser guardada” (FONTCUBERTA, 2012, p.172).
A fotografia se apresenta como possibilidade de registro de memória. A nova imagem técnica se configura pela impressão da reflexão da luz dos objetos que pretende gravar. A gravação das imagens praticamente prescinde da interferência humana, que é substituída pela “mão da natureza”. A imagem dos objetos é capturada opticamente e gravada em uma emulsão sensível à luz. A riqueza de detalhes e a verossimilhança com a realidade que a imagem fotográfica oferece a coloca, aos olhos do sujeito moderno, mais confiável quando comparada às outras imagens tradicionais, que estariam fadadas à imperfeição da subjetividade humana.
Ao longo da segunda metade do século XIX até o começo do século XX, a imagem fotográfica vai sendo experimentada em diferentes funções e usos, com o eterno embate entre o registro do real e a criação ficcional estava presente. Apesar do flerte com a estética pictorialista e da participação fundamental em outros movimentos artísticos como nas vanguardas europeias, nota-se um protagonismo maior da fotografia no século XX, quando está associada às suas qualidades objetivas de reprodução do real. Dessa forma, é estabelecida uma relação direta entre a fotografia e o conceito de verdade, o que a qualifica de forma exemplar para as funções de documentação, informação e memória. Essa característica se acentua quando a ideia de índice peirciano (DUBOIS, 1993) atesta o contato físico entre a emanação do real e a emulsão fotográfica através da gravação de sua luz. Fotografia e memória estabelecem um vínculo indissociável na modernidade.
No final do século XX, a tecnologia digital começa a exercer grande influência em todos os setores da sociedade provocando profundas mudanças estruturais, o que atinge também o fazer fotográfico. Para Lúcia Santaella (2005), podemos estabelecer três paradigmas da imagem: o pré-fotográfico, o fotográfico e o pós-fotográfico. Apesar da classificação sugerir um antes e um depois, uma passagem de tempo, é importante ressaltar que são paradigmas da imagem e podem conviver, coexistir todos em um mesmo tempo histórico. O surgimento de cada uma delas individualmente, porém, alterou nosso entendimento e relação com as imagens.
O pré-fotográfico está relacionado à produção manual, artesanal de imagens que resulta num objeto material único: desenhos, pinturas, esculturas. No paradigma fotográfico temos uma máquina intermediando o processo de produção de imagens, baseado na captação e gravação de luz dos objetos materiais, respectivamente através do princípio da câmera escura e de uma superfície fotossensível. O cinema, a fotografia, o vídeo e a holografia são alguns dos representantes desse paradigma. O paradigma pós-fotográfico é constituído por imagens sintéticas, binárias, numéricas, ou seja, imagens inteiramente produzidas por computação. São imagens que parecem fotografias, mas na verdade são simulações. Dessa forma, a relação física e material na produção da imagem não se faz mais presente como nos outros paradigmas. Muitos teóricos da imagem têm usado o termo pós-fotografia para descrever o fenômeno de ordem visual contemporâneo.
Joan Fontcuberta (2016, p.7) em La fúria de las imagenes afirma que “a pós-fotografia refere-se à fotografia que flui no espaço híbrido da sociabilidade digital e que é uma consequência da superabundância visual”. Para além de especificar as propriedades tecnológicas da imagem, Fontcuberta nomeia de pós-fotografia o fenômeno de hipertrofia da utilização de imagens no ciberespaço e nas redes sociais. Esta ordem visual contemporânea é marcada por três fatores: a imaterialidade e a transmissão das imagens; sua profusão e disponibilidade; e sua contribuição decisiva para a transmissão do conhecimento e da comunicação.
Esse fenômeno só foi possível com chegada da internet 2.0 e a incorporação de câmeras aos telefones celulares. Hoje em dia, fazer uma ligação telefônica é apenas uma das funções - e ousaria dizer das menos importantes - que um smartphone desempenha. Mais do que telefones que fotografam, estamos diante de câmeras fotográficas que fazem ligações telefônicas, além de possibilitar outras formas de comunicação, como por exemplo, compartilhar fotos em tempo real nas redes sociais digitais.
Na internet, os valores de materialidade e qualidade são relegados a outros, tais como: a profusão, o imediatismo e a conectividade. Se a imagem analógica foi associada tautologicamente à verdade e à memória, a pós-fotografia transforma esses vínculos: ontologicamente não mais valida a representação naturalista da câmera e sociologicamente assiste a uma mudança de suas utilizações. Fontcuberta (2016) aponta que a sociedade hipermoderna apresenta uma nova relação com o espaço e tempo, provocada pela internet e pelos meios globais de comunicação. Afirmar que a diferença ontológica entre as duas tecnologias influencia diretamente a utilização que a sociedade faz da fotografia, seria adotar uma posição de quebra, clivagem, não levando em consideração a influência de um tempo sobre outro e de uma técnica sobre a outra. Apesar das mudanças fundamentais em sua gênese, o homem continua a utilizar a fotografia, ainda que de base digital, como documento. Tom Gunning (2016) não sustenta esse discurso de clivagem que opõe o indexical e o digital e nos alerta sobre uma relação fenomenológica que explicaria a relação da sociedade com a fotografia. O autor aponta os trabalhos de André Bazin e Roland Barthes como um caminho para explicar essa questão fenomenológica. O autor nos aconselha a parar de tentar explicar o efeito da fotografia e, ao invés disso, tentar descrevê-la de forma mais abrangente. Ele destaca que a abordagem semiótica, a fotografia ser signo de algo, tem um caráter secundário em relação ao fato de a fotografia ser uma representação que nos apresenta uma imagem do mundo. A fotografia nos convida a ir além dessas significações, apresentando uma via de acesso a um mundo múltiplo e complexo: “Desse modo, as fotografias são mais que apenas imagens. Ou, então, elas são imagens especiais, imagens cujo testemunho visual nos convida a um modo de observação singular, a fazer outras perguntas e a formular outros pensamentos” (p.109).
A pós-fotografia possibilita que o homem utilize a imagem fotográfica de outras maneiras, como por exemplo, a produção de selfies, que se caracteriza por uma lúdica construção da identidade pessoal ou a utilização de imagens como forma de comunicação interpessoal nas redes digitais. Estas novas práticas se somam às antigas, não as substituem. Dessa forma não anulam, por exemplo, a relação fundamental da imagem fotográfica com a memória. Além disso, a pós-fotografia passa a apresentar outras possibilidades de fortalecimento desta relação. Não devemos falar das atuais práticas fotográficas substituindo e suplantando as antigas, mas sim de uma convivência entre novas e velhas práticas.
O portal "Brasiliana Fotográfica" é uma iniciativa da Fundação Biblioteca Nacional e do Instituto Moreira Salles e foi construído com a proposta de dar visibilidade e fomentar o debate, a pesquisa e a reflexão sobre acervos fotográficos documentais sobre o Brasil, além da preservação desse patrimônio digital de imagens. O portal está aberto a receber outras instituições do Brasil e do exterior, públicas e privadas, detentoras de acervos originais de documentos fotográficos referentes ao Brasil. Dessa forma, foram incorporados às fotografias iniciais os acervos fotográficos do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e do Arquivo Nacional, dentre outros. Iniciativas como esta fortalecem muito a relação entre fotografia e memória na contemporaneidade, a partir da acessibilidade universal que o portal propõe às imagens do passado e ao incentivo de pesquisas sobre o tema.
Outra contribuição importante da era pós-fotográfica em relação à memória é a de que as imagens não são mais distribuídas de forma vertical pelos meios de comunicação massivos, mas são, principalmente, compartilhadas na forma horizontal pelos atores sociais através das redes digitais. Dessa forma, podemos falar sobre a ocorrência de uma ecologia visual, já que envolve um sistema formado por um meio-ambiente virtual que é alimentado pela criação cultural dos seres humanos. Nesse ambiente que propicia ao homem contemporâneo uma participação mais ativa nos processos informacionais, a produção cultural através de fotografias é muito mais frequente se comparada com outras formas. Esse ambiente possibilita que grupos possam construir suas próprias memórias visuais, particularmente, aqueles que não sentem representados pelas mídias hegemônicas, proporcionando ao ator social a possibilidade de construção de sua representação visual e afirmação identitária.
A relação entre fotografia e memória segue profícua e se adequando às novas possibilidades oferecidas pelas mudanças tecnológicas que regem nossas relações sociais. Novas possibilidades surgem, outras se transformam, mas a relação inicial entre fotografia e memória, estabelecida na modernidade de forma tão estreita, ainda permanece no contemporâneo.

Referências:
DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Editora Papirus, 1993.
FONTCUBERTA, J. La furia de las imágenes - Notas sobre la postfotografia. Barcelona: Galáxia Gutemberg, 2016.
_______________. A câmera de Pandora: a fotografi@ depois da fotografia. São Paulo: Gustavo Gili, 2012.
GUNNING, T. Qual a intenção de um índice? Ou: Falsificando fotografias. In: FATORELLI, A; CARVALHO, V de; PIMENTEL, L. (Org.) Fotografia contemporânea: desafios tendências. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016.
SANTAELLA, L. Os três paradigmas da imagem. In: SALMAIN, E. (org.) O fotográfico. São Paulo. Editora Hucitec / Editora Senac São Paulo, 2005.
[1] Professor Doutor do Departamento de Comunicação Social da UFF - Universidade Federal Fluminense.
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